Tuesday, February 20, 2007

31 DE JANEIRO DE 2007
Frei Betto: As trapalhadas de Bush

O que fará Bush? Nem pode retirar as tropas do Iraque, exceto admitindo a derrota, nem sabe como, por que e até quando mantê-las ali. Joseph Stiglitz ganhou o Prêmio Nobel de Economia e foi economista-chefe do Banco Mundial. Linda Bilmes ensina finanças públicas em Harvard. Juntas, as duas cabeças calculam que Bush já gastou US$ 2,2 trilhões na guerra do Iraque. O orçamento real é 22 vezes maior que o oficialmente declarado. Isso é mais de duas vezes o PIB do Brasil, orçado hoje em R$ 1,9 trilhão.

Por Frei Betto, na Folha de S. Paulo*

Bush demitiu, em 2003, seu mais alto assessor econômico, Larry Lindsey, por ter ousado sugerir que o custo da guerra podia chegar a US$ 200 bilhões. A Casa Branca irritou-se na época e se desdobrou no Congresso para acalmar os parlamentares. Despachou Paul Wolfowitz (era o número dois do Pentágono e é, hoje, presidente do Banco Mundial) para ir lá e jurar a deputados e senadores que o próprio Iraque financiaria tudo com o petróleo que jorra de seu solo...

A intervenção dos EUA no Iraque resulta de uma seqüência de mentiras. Primeiro, Bush alardeou que o governo de Saddam estaria envolvido no 11 de Setembro. A acusação jamais foi comprovada. Depois, acusou-o de estocar armas de destruição em massa. Saddam abriu as portas do país e permitiu que peritos da CIA o revirassem de cabeça para baixo. Após um ano de investigações, nada foi encontrado. Os grandes jornais dos EUA chegaram a pedir desculpas aos leitores por terem acreditado no engodo.

Enfim, Bush tentou justificar o atoleiro em que se meteu prometendo fazer do Iraque uma democracia capaz de disseminar-se pelo mundo árabe.

Forjou eleições, dividiu a nação e aprofundou a mortandade. Saddam Hussein foi enforcado sob acusação de matar 104 xiitas. Na época, o Iraque estava em guerra com o Irã e o ditador era um títere nas mãos do Tio Sam. O apoio foi levado a Bagdá por Donald Rumsfeld, que até há pouco monitorava o Pentágono e a guerra no Iraque.

Bush está desesperado. Com a aprovação popular em míseros 27% e as derrotas nas eleições da Câmara e do Senado, tenta convencer os estadunidenses de que vale a pena enviar mais soldados ao Iraque (estão lá cerca de 140 mil das tropas de intervenção). Pesquisas apontam que 61% da população dos EUA é contra enviar mais tropas.

Já morreram no Iraque 3 mil soldados made in USA e 600 mil iraquianos. Como cota de urgência, estão seguindo mais 21 mil soldados -número insignificante numa Bagdá com 5 milhões de habitantes hostis à presença dos EUA. Ao se referir ao custo da guerra, Bush omite os gastos com cerca de 20 mil militares feridos. Hoje, as máquinas de guerra oferecem blindagens mais resistentes. Diminuem o total de mortos, mas produzem mais feridos: daí os enormes gastos com amputações, internações, indenizações etc.

Calcula-se que só os danos cerebrais consumam US$ 35 bilhões. Com a invasão do Iraque, Bush concedeu ao terrorismo status de guerra, ampliou o poder de recrutamento de suas organizações e lhes ofereceu objetivos e alvos concretos. No Iraque, o terror sabe onde e em quem atirar, enquanto as tropas de ocupação miram em alvos imprecisos e penalizam a população civil.

O que fará Bush? Se correr, o bicho pega; se ficar, o bicho come. Nem pode retirar as tropas do Iraque, exceto admitindo a derrota, nem sabe como, por que e até quando mantê-las ali.

Além da guerra coordenada pelo Pentágono, há também uma guerra civil que cindiu a unidade nacional iraquiana. Os EUA não podem apoiar os sunitas, seus inimigos históricos. Não podem apoiar os xiitas, aliados do Irã.

Não podem apoiar os curdos, porque a Turquia não toleraria.

A milícia xiita, conhecida como Exército Mehdi, liderada pelo clérigo Moqtada al Sadr, conta com 60 mil combatentes taticamente apoiados por 2 milhões de xiitas que habitam o leste de Bagdá. O Exército e a polícia iraquianos são constituídos predominantemente por xiitas. Como oferecer segurança a bairros habitados por sunitas, que apóiam seus rebeldes?

Bush, considerado o homem mais bem assessorado do mundo, comprovou a lei de Murphy: ''Se tudo pode dar errado, dará''. O grave é que o move a sede de vingança. Não se conforma de seu pai ter fracassado na tentativa de derrubar Saddam Hussein, em 1991, e de sua família ter sido sócia dos Bin Laden em negócios de petróleo. Como bem escreve Herman Melville em ''Moby Dick'': ''Ah, Deus! Que tormentos sofre o homem que se consome com seu desejo de vingança. Dorme de mãos cerradas e acorda com as unhas ensangüentadas cravadas nas palmas''.

* Carlos Alberto Libânio Christo, frade dominicano e escritor, autor de Batismo de sangue; fonte: Folha de S. Paulo

Fonte: Diário Vermelho
18 DE FEVEREIRO DE 2007
O século das guerrilhas é agora

Para Gérard Chaliand, especialista em conflitos armados, as "guerras assimétricas" entre as grandes potências e forças não convencionais vão se multiplicar. Francês de origem armênia, 72 anos, autor de perto de 60 obras e ex-colaborador de Amílcar Cabral na guerra de libertação contra o colonialismo português, Chaliand concedeu esta entrevista para o diário francês Le monde.


Imagem: Patrulha dos EUA no oeste do Iraque, 30/1/2006

P: Os atentados se sucedem em Bagdá, com centenas de mortos e feridos. O fracasso dos Estados Unidos no Iraque pressagia uma generalização dos conflitos opondo uma guerrilha a um possante exército regular?

R: A guerrilha, ou o terrorismo, vai com efeito ocupar um espaço crescente, pois é o único recurso do fraco para resistir ao forte. Esses conflitos assimétricos, ou guerras irregulares, transmitem uma mensagem: indicam que os fortes podem ser colocados em xeque. A condição, para os fracos, é que aceitem pagar o preço. Sob este prisma, o Iraque, e amanhã o Afeganistão, são exemplos encorajadores para os insurretos que combatem as tropas ocidentais.

No Iraque, os americanos cometeram um erro quanto à "natureza" da guerra. A insurreição de 2003 foi primeiro negada e depois mal analisada.

Todas as insurreições dos últimos 60 anos começaram com poucos homens, poucas armas, poucos recursos financeiros. Toda a inteligência de um movimento insurreicional reside em procurar, com o tempo, transformar progressivamente a fraqueza inicial em força. Ora, no Iraque foi o núcleo de um estado que constituiu a ponta de lança da insurreição: os serviços secretos, os fedaíns, a Guarda republicana. A insurreição dispôs já de início de combatentes, armas, dinheiro, informações.

P: Deve-se deduzir daí a superioridade quase sistemática da parte militarmente mais fraca?

R: Por uma série de razões ligadas à demografia, ao envelhecimento das populações, ao recuo da inelutável realidade da morte, os exércitos ocidentais e mais ainda a sua opinião pública não conseguem suportar mais que baixas muito modestas. Em contrapartida, seus adversários saídos de sociedades mais ou menos tradicionais, com demografia vigorosa e populações jovens, admitem ser sangrados.

Em conflitos assim, a proporção das perdas humanas entre os dois campos é em média de um para oito. Assim se reestabelece o equilíbrio. A assimetria, baseada na tecnologia, é apenas aparente. As guerras irregulares demonstram sua temível eficácia, como no Iraque e no Afeganistão, ou no sul do Líbano. Elas não permitem que se vença militarmente, mas acuam o adversário, e jogam com o tempo, fator capital.

P: As grandes potências estão preparadas para esses conflitos futuros?

R: Os exérciotos clássicos não se adptaram a eles. Graças às novas tecnologias, as tropas regulares podem escapar de radares e alvejar objetivos importantes por meio de armas teleguiadas (os PMG, Precision Guided Munitions). Mas a capacidade dos combatentes a pé para se dispersar e se dissimular tornam-nos temíveis, sobretudo desde que armas individuais conseguem destruir tanques como em Grozny ou no sul do Líbano.

P: Anunciou-se o advento de guerras tecnológicas sem corpo-a-corpo. As tropas ocidentais terão que se familiarizar de novo com a violência?

R: De fato. Nossas sociedades norte-americanas ou européias-ocidentais têm uma relação com a violência que se tornou mais abstrata ou virtual. Ora, as guerras irregulares são travadas no terreno. Implicam em combate próximo, baseado na surpresa e na mobilidade, princípios cardeais da guerrilha. Aí não há escapatória para a violência. Evitá-la equivale a deixar o terreno para o outro.

Foi o que se passou no Afeganistão. Foi o que o estado-maior israelense acreditou que poderia evitar no sul do Líbano... A visão dos cadáveres mutilados, o odor das carnificinas recentes, tudo pontuado pelo medo, presente desde que se começa a patrulhar, no cotidiano das tropas que fazem a experiência, em sua pele, do que seja a violência.

Esse tipo de conflitos traz consigo ódios extremos. Endurece até, eventualmente, tornar alguém um carrasco, para alguns, ou alguém repugnante. Estamos bem longe de uma guerra onde o adversário não tem rosto.

P: As guerras cibernéticas, ou seja, a possibilidade de perturbar estruturas de comando via hackers, vão emergir?

R: Sim, é algo que está na esfera do possível. Por exemplo, no quadro de guerras clássicas entre adversários com tecnologias avançadas. Ou então como no Iraque em 2003, quando os radares se tornaram inoperantes. Em contrapartida, a desorganização generalizada do sistema de defesa de um Estado avançado, por parte de alguns indivíduos dotados de competência e imaginação tecnológicas, isso está na esfera do fantástico.

Léxico:
Num conflito assimétrico, um exército regular e uma força não-convencional se enfrentam. Os dois campos não possuem os mesmos critérios de vitória, nem as mesmas normas e meios, especialmente em matéria de tecnologia.

Para ler:
War in the Shadows : the Guerrilla in History, Robert Asprey (Backinprint.com, 2002).
Guerres américaines : Irak-Afghanistan, Gérard Chaliand (no prelo, março de 2007, Editions du Rocher).

Fonte: Le Monde
Publicado em português em Diário Vermelho