18 DE FEVEREIRO DE 2007
O século das guerrilhas é agora
Para Gérard Chaliand, especialista em conflitos armados, as "guerras assimétricas" entre as grandes potências e forças não convencionais vão se multiplicar. Francês de origem armênia, 72 anos, autor de perto de 60 obras e ex-colaborador de Amílcar Cabral na guerra de libertação contra o colonialismo português, Chaliand concedeu esta entrevista para o diário francês Le monde.
Imagem: Patrulha dos EUA no oeste do Iraque, 30/1/2006
P: Os atentados se sucedem em Bagdá, com centenas de mortos e feridos. O fracasso dos Estados Unidos no Iraque pressagia uma generalização dos conflitos opondo uma guerrilha a um possante exército regular?
R: A guerrilha, ou o terrorismo, vai com efeito ocupar um espaço crescente, pois é o único recurso do fraco para resistir ao forte. Esses conflitos assimétricos, ou guerras irregulares, transmitem uma mensagem: indicam que os fortes podem ser colocados em xeque. A condição, para os fracos, é que aceitem pagar o preço. Sob este prisma, o Iraque, e amanhã o Afeganistão, são exemplos encorajadores para os insurretos que combatem as tropas ocidentais.
No Iraque, os americanos cometeram um erro quanto à "natureza" da guerra. A insurreição de 2003 foi primeiro negada e depois mal analisada.
Todas as insurreições dos últimos 60 anos começaram com poucos homens, poucas armas, poucos recursos financeiros. Toda a inteligência de um movimento insurreicional reside em procurar, com o tempo, transformar progressivamente a fraqueza inicial em força. Ora, no Iraque foi o núcleo de um estado que constituiu a ponta de lança da insurreição: os serviços secretos, os fedaíns, a Guarda republicana. A insurreição dispôs já de início de combatentes, armas, dinheiro, informações.
P: Deve-se deduzir daí a superioridade quase sistemática da parte militarmente mais fraca?
R: Por uma série de razões ligadas à demografia, ao envelhecimento das populações, ao recuo da inelutável realidade da morte, os exércitos ocidentais e mais ainda a sua opinião pública não conseguem suportar mais que baixas muito modestas. Em contrapartida, seus adversários saídos de sociedades mais ou menos tradicionais, com demografia vigorosa e populações jovens, admitem ser sangrados.
Em conflitos assim, a proporção das perdas humanas entre os dois campos é em média de um para oito. Assim se reestabelece o equilíbrio. A assimetria, baseada na tecnologia, é apenas aparente. As guerras irregulares demonstram sua temível eficácia, como no Iraque e no Afeganistão, ou no sul do Líbano. Elas não permitem que se vença militarmente, mas acuam o adversário, e jogam com o tempo, fator capital.
P: As grandes potências estão preparadas para esses conflitos futuros?
R: Os exérciotos clássicos não se adptaram a eles. Graças às novas tecnologias, as tropas regulares podem escapar de radares e alvejar objetivos importantes por meio de armas teleguiadas (os PMG, Precision Guided Munitions). Mas a capacidade dos combatentes a pé para se dispersar e se dissimular tornam-nos temíveis, sobretudo desde que armas individuais conseguem destruir tanques como em Grozny ou no sul do Líbano.
P: Anunciou-se o advento de guerras tecnológicas sem corpo-a-corpo. As tropas ocidentais terão que se familiarizar de novo com a violência?
R: De fato. Nossas sociedades norte-americanas ou européias-ocidentais têm uma relação com a violência que se tornou mais abstrata ou virtual. Ora, as guerras irregulares são travadas no terreno. Implicam em combate próximo, baseado na surpresa e na mobilidade, princípios cardeais da guerrilha. Aí não há escapatória para a violência. Evitá-la equivale a deixar o terreno para o outro.
Foi o que se passou no Afeganistão. Foi o que o estado-maior israelense acreditou que poderia evitar no sul do Líbano... A visão dos cadáveres mutilados, o odor das carnificinas recentes, tudo pontuado pelo medo, presente desde que se começa a patrulhar, no cotidiano das tropas que fazem a experiência, em sua pele, do que seja a violência.
Esse tipo de conflitos traz consigo ódios extremos. Endurece até, eventualmente, tornar alguém um carrasco, para alguns, ou alguém repugnante. Estamos bem longe de uma guerra onde o adversário não tem rosto.
P: As guerras cibernéticas, ou seja, a possibilidade de perturbar estruturas de comando via hackers, vão emergir?
R: Sim, é algo que está na esfera do possível. Por exemplo, no quadro de guerras clássicas entre adversários com tecnologias avançadas. Ou então como no Iraque em 2003, quando os radares se tornaram inoperantes. Em contrapartida, a desorganização generalizada do sistema de defesa de um Estado avançado, por parte de alguns indivíduos dotados de competência e imaginação tecnológicas, isso está na esfera do fantástico.
Léxico:
Num conflito assimétrico, um exército regular e uma força não-convencional se enfrentam. Os dois campos não possuem os mesmos critérios de vitória, nem as mesmas normas e meios, especialmente em matéria de tecnologia.
Para ler:
War in the Shadows : the Guerrilla in History, Robert Asprey (Backinprint.com, 2002).
Guerres américaines : Irak-Afghanistan, Gérard Chaliand (no prelo, março de 2007, Editions du Rocher).
Fonte: Le Monde
Publicado em português em Diário Vermelho
O século das guerrilhas é agora
Para Gérard Chaliand, especialista em conflitos armados, as "guerras assimétricas" entre as grandes potências e forças não convencionais vão se multiplicar. Francês de origem armênia, 72 anos, autor de perto de 60 obras e ex-colaborador de Amílcar Cabral na guerra de libertação contra o colonialismo português, Chaliand concedeu esta entrevista para o diário francês Le monde.
Imagem: Patrulha dos EUA no oeste do Iraque, 30/1/2006
P: Os atentados se sucedem em Bagdá, com centenas de mortos e feridos. O fracasso dos Estados Unidos no Iraque pressagia uma generalização dos conflitos opondo uma guerrilha a um possante exército regular?
R: A guerrilha, ou o terrorismo, vai com efeito ocupar um espaço crescente, pois é o único recurso do fraco para resistir ao forte. Esses conflitos assimétricos, ou guerras irregulares, transmitem uma mensagem: indicam que os fortes podem ser colocados em xeque. A condição, para os fracos, é que aceitem pagar o preço. Sob este prisma, o Iraque, e amanhã o Afeganistão, são exemplos encorajadores para os insurretos que combatem as tropas ocidentais.
No Iraque, os americanos cometeram um erro quanto à "natureza" da guerra. A insurreição de 2003 foi primeiro negada e depois mal analisada.
Todas as insurreições dos últimos 60 anos começaram com poucos homens, poucas armas, poucos recursos financeiros. Toda a inteligência de um movimento insurreicional reside em procurar, com o tempo, transformar progressivamente a fraqueza inicial em força. Ora, no Iraque foi o núcleo de um estado que constituiu a ponta de lança da insurreição: os serviços secretos, os fedaíns, a Guarda republicana. A insurreição dispôs já de início de combatentes, armas, dinheiro, informações.
P: Deve-se deduzir daí a superioridade quase sistemática da parte militarmente mais fraca?
R: Por uma série de razões ligadas à demografia, ao envelhecimento das populações, ao recuo da inelutável realidade da morte, os exércitos ocidentais e mais ainda a sua opinião pública não conseguem suportar mais que baixas muito modestas. Em contrapartida, seus adversários saídos de sociedades mais ou menos tradicionais, com demografia vigorosa e populações jovens, admitem ser sangrados.
Em conflitos assim, a proporção das perdas humanas entre os dois campos é em média de um para oito. Assim se reestabelece o equilíbrio. A assimetria, baseada na tecnologia, é apenas aparente. As guerras irregulares demonstram sua temível eficácia, como no Iraque e no Afeganistão, ou no sul do Líbano. Elas não permitem que se vença militarmente, mas acuam o adversário, e jogam com o tempo, fator capital.
P: As grandes potências estão preparadas para esses conflitos futuros?
R: Os exérciotos clássicos não se adptaram a eles. Graças às novas tecnologias, as tropas regulares podem escapar de radares e alvejar objetivos importantes por meio de armas teleguiadas (os PMG, Precision Guided Munitions). Mas a capacidade dos combatentes a pé para se dispersar e se dissimular tornam-nos temíveis, sobretudo desde que armas individuais conseguem destruir tanques como em Grozny ou no sul do Líbano.
P: Anunciou-se o advento de guerras tecnológicas sem corpo-a-corpo. As tropas ocidentais terão que se familiarizar de novo com a violência?
R: De fato. Nossas sociedades norte-americanas ou européias-ocidentais têm uma relação com a violência que se tornou mais abstrata ou virtual. Ora, as guerras irregulares são travadas no terreno. Implicam em combate próximo, baseado na surpresa e na mobilidade, princípios cardeais da guerrilha. Aí não há escapatória para a violência. Evitá-la equivale a deixar o terreno para o outro.
Foi o que se passou no Afeganistão. Foi o que o estado-maior israelense acreditou que poderia evitar no sul do Líbano... A visão dos cadáveres mutilados, o odor das carnificinas recentes, tudo pontuado pelo medo, presente desde que se começa a patrulhar, no cotidiano das tropas que fazem a experiência, em sua pele, do que seja a violência.
Esse tipo de conflitos traz consigo ódios extremos. Endurece até, eventualmente, tornar alguém um carrasco, para alguns, ou alguém repugnante. Estamos bem longe de uma guerra onde o adversário não tem rosto.
P: As guerras cibernéticas, ou seja, a possibilidade de perturbar estruturas de comando via hackers, vão emergir?
R: Sim, é algo que está na esfera do possível. Por exemplo, no quadro de guerras clássicas entre adversários com tecnologias avançadas. Ou então como no Iraque em 2003, quando os radares se tornaram inoperantes. Em contrapartida, a desorganização generalizada do sistema de defesa de um Estado avançado, por parte de alguns indivíduos dotados de competência e imaginação tecnológicas, isso está na esfera do fantástico.
Léxico:
Num conflito assimétrico, um exército regular e uma força não-convencional se enfrentam. Os dois campos não possuem os mesmos critérios de vitória, nem as mesmas normas e meios, especialmente em matéria de tecnologia.
Para ler:
War in the Shadows : the Guerrilla in History, Robert Asprey (Backinprint.com, 2002).
Guerres américaines : Irak-Afghanistan, Gérard Chaliand (no prelo, março de 2007, Editions du Rocher).
Fonte: Le Monde
Publicado em português em Diário Vermelho
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